Crédito em pele de cordeiro
Por: Afonso Bazolli
Em: Crédito
Fonte: Valor Econômico
No filme Gremlins, de 1984, um pai de família compra para seu filho um exótico, mas aparentemente inofensivo, animal com jeito de pelúcia, um Gizmo. As únicas recomendações, segundo o vendedor, eram, sob hipótese nenhuma, alimentá-lo após a meia noite e molhá-lo. A quebra das regras trouxe consequências catastróficas. A água fez a criatura se multiplicar sem controle. E a comida fora de horário transformou o inocente bichinho em um pequeno monstro, o Gremlin. As características do caótico personagem de ficção guardam semelhanças com um grande risco que as famílias enfrentam neste ano: as dívidas.
Segundo especialistas, ainda que comecem pequenos e, aparentemente, pouco perigosos, empréstimos usados para cobrir rombos ou para consumo podem vir a sofrer o “efeito Gremlin” diante de um cenário de juros altos e ainda subindo, associado à sombra do crescimento do desemprego e da inflação em patamar elevado. Ou seja, o pior ainda não passou.
Os juros em elevação funcionam para as dívidas como a água para os Gremlins, ou seja, encarecem créditos pósfixados, como as linhas de cartão de crédito e cheque especial, podendo levar o consumidor a cair na armadilha de contrair mais financiamento para cobrir o rombo. “É comum a pessoa estar no rotativo do cartão, com o cheque especial tomado, e contratar novo empréstimo para tentar cobrir os buracos financeiros. Essa pessoa começa a abrir várias frentes de dívida e aí chega no limite de não conseguir mais crédito e o salário estar completamente deteriorado pelos compromissos financeiros”, afirma o coordenador do Programa de Atendimento ao Superendividado do Procon SP, Diógenes Donizete.
Conforme a Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), do momento em que a Selic chegou em seu patamar mais baixo, de 7,25% ao ano, em outubro de 2012, até abril deste ano, os juros do cartão de crédito e do cheque especial explodiram. No caso da primeira linha, as taxas anuais subiram 102 pontos percentuais e meio, o que representa um crescimento de 53% no custo do empréstimo.
A situação é semelhante no caso do cheque especial, que teve um salto de 60 pontos percentuais na taxa anual. Isso significa um encarecimento de 41,5% em relação há três anos, segundo cálculos da Anefac.
Apesar do já forte aumento de custos de dívidas caras, esse movimento ainda não chegou ao fim. Isso porque o ciclo de aperto monetário do Banco Central ainda não acabou. Conforme o boletim Focus, do BC, que reúne as projeções das principais instituições financeiras, a taxa básica Selic, atualmente em 13,25% ao ano, deve terminar 2015 no patamar de 13,75%. Mas no grupo dos Top 5, das cinco casas que mais acertam os prognósticos, as estimativas máximas já alcançam 14,25%. “Vai piorar para o resto do ano. A perspectiva é de que a Selic aumente e a inadimplência cresça. Então o quadro não é de melhora, mas, ao contrário, de piora”, afirma o professor de finanças da Fundação Instituto de Administração (FIA), Keyler Carvalho Rocha.
O impacto desse encarecimento tem se tornado cada vez mais difícil de ser absorvido pelas famílias nos últimos anos, como mostra o indicador do BC relativo ao rendimento médio efetivo das pessoas ocupadas. Segundo a instituição, enquanto os custos com cartão e cheque especial subiram 53% e 41%, a renda ficou estagnada em relação há três anos. Em março deste ano, o valor médio se situou em R$ 1.967,42 ante os R$ 1.965,92, em outubro de 2012.
“Nós nunca tivemos um conjunto de fatores tão negativos ao mesmo tempo”, afirma o diretor executivo da Anefac, Miguel de Oliveira. “As famílias têm sido afetadas por inflação elevada há algum tempo, alta de juros e queda na atividade econômica, com uma recessão esperada para o ano. Esse conjunto acaba trazendo outro grave problema adicional que é o crescimento do desemprego”, considera.
Dados do Programa de Administração de Varejo, da FIA (Provar/FIA), e do Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo & Mercado de Consumo (Ibevar) apontam para uma rápida contração na folga dos orçamentos familiares. Segundo pesquisa das instituições, a margem mensal para despesas extras caiu de 10,8%, no último trimestre de 2014, para 9,2% no primeiro trimestre deste ano e deve despencar para 6,1% no segundo período de 2015. “No cenário atual, aumentaram as chances de as pessoas ficarem inadimplentes. Além disso, a elevação do risco de crédito gera um ciclo vicioso porque os bancos aumentam as taxas para compensar esse risco maior de inadimplência”, explica o presidente do conselho do Provar/FIA e do Ibevar, Claudio Felisoni.
A maior dificuldade em absorver custos crescentes devido à inflação alta e ao encarecimento do crédito, aliados a uma deterioração no mercado de trabalho, podem funcionar como “alimento após a meianoite” para as dívidas, que, como os Gremlins, transformam sua natureza e assumem um caráter destrutivo. O cenário tóxico para os orçamentos familiares tem levado ao crescimento da inadimplência.
Segundo o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), o Brasil tem 55,3 milhões de pessoas inscritas em cadastros de proteção ao crédito. O número representa 37,9% da população entre 18 e 95 anos. “A partir de março deste ano houve um repique da inadimplência, pois a piora dos indicadores foi muita rápida e principalmente a piora da confiança”, afirma a economistachefe do SPC Brasil, Marcela Kawauti. “O consumidor brasileiro vive equilibrando pratos e com o cobertor curto cresce a inadimplência”, afirma.
Conforme o economista da Serasa Experian, Luiz Rabi, o ritmo de crescimento de negativações está acima do padrão histórico e “deve continuar assim, pelo menos, nos próximos seis meses”. De acordo com Rabi, nos primeiros quatro meses do ano o volume de inclusão de devedores nos cadastros de proteção ao crédito aumentou 15% em relação ao mesmo período do ano passado. Esse número está seis pontos percentuais acima da média histórica (9%).
“A inadimplência sofre influência de ações externas, como taxa de juros e de emprego. Se esses valores saírem de controle, podemos ter uma surpresa ainda mais negativa em relação à inadimplência”, avalia o presidente da Boa Vista, administradora do Serviço Central de Proteção ao Crédito (SCPC), Dorival Dourado. A melhora nos índices de atraso nos pagamentos deve vir apenas em 2016, na análise de Marcela, do SPC. “A gente ainda está vendo a inadimplência que vem de uma época em que se tomou muito credito e, quanto mais a crise passar, mais a restrição de crédito vai ajudar a segurar os atrasos.”
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