
Diante da digitalização acelerada e exigências de maior segurança jurídica, o modelo tradicional está prestes a ser renovado
No cenário empresarial brasileiro, talvez não haja instrumento tão enraizado nas relações comerciais quanto a duplicata mercantil. Ao longo das décadas, esse título de crédito moldou uma cultura de confiança na circulação de bens e serviços a ponto de caracterizar o jeito brasileiro de fazer negócios. Mas, diante da digitalização acelerada e exigências de maior segurança jurídica, o modelo tradicional está prestes a ser renovado.
A duplicata tradicional, emitida em suporte físico e vinculada à nota fiscal ou a fatura, sempre exigiu a observância do princípio da cartularidade, sendo indispensável a posse do título para legitimar a cobrança executiva. No ambiente bancário, essa materialidade gerava custos operacionais elevados, riscos de extravio e falsificação, além de demandar rigorosos controles internos para conferência documental.
É nesse cenário de disrupção tecnológica que surge a duplicata escritural, criada por lei e regulamentada por normas do Conselho Monetário Nacional e do Banco Central do Brasil. A nova legislação passou a permitir a emissão, circulação e liquidação da duplicata exclusivamente em meio escritural, tornando obrigatórios a emissão e o registro por entidades autorizadas pelo Banco Central do Brasil, representando um marco de modernização e segurança no sistema bancário, fundamental para a negociação de recebíveis, a concessão de crédito e a fluidez do capital de giro das empresas.
A Resolução CMN nº 4.815/20 disciplina a atividade de registro e escrituração no âmbito do Sistema Financeiro, estabelecendo requisitos de governança, segurança, interoperabilidade e transparência para as entidades autorizadas, enquanto a Resolução BCB nº 339/23 dispõe sobre a atividade de escrituração de duplicata escritural, o sistema eletrônico de escrituração gerido por entidade autorizada e sobre o registro, depósito centralizado e negociação desses títulos de crédito escriturais. Em conjunto, o arcabouço normativo migra o regime da cartularidade para a registralidade, reduz custos operacionais, amplia a liquidez dos recebíveis e mitiga fraudes, ao mesmo tempo em que assegura ao sacado mecanismos eletrônicos para manifestação de aceite ou de contestação.
Estima-se que o sistema de escrituração de duplicatas seja implementado entre novembro de 2025 e março de 2026. O processo será realizado por etapas, com uma fase de funcionalidades limitadas e gradual interoperabilidade entre as entidades escrituradoras. Espera-se a plena operacionalidade entre junho e outubro de 2026, quando se implementará o cronograma de obrigatoriedade de utilização da forma escritural pelas instituições, conforme o porte das empresas envolvidas, encerrando-se as operações bancárias com duplicatas cartulares.
No modelo escritural, o sacador (fornecedor) contrata um escriturador autorizado para emitir e escriturar as duplicatas, bem como levá-las a registro junto a uma entidade registradora autorizada; em seguida, o sacado (devedor) é formalmente notificado para confirmar a concordância com a emissão. Se o sacado não se manifestar no prazo regulamentar, presume-se o aceite da duplicata, mantendo-se a natureza causal e a força executiva do título, agora legitimadas pelo registro eletrônico.
A duplicata escritural beneficia todo o mercado, especialmente no que se refere à liquidez e à redução de custos. A substituição do papel pelo registro digital reduz prazos de formalização, aumenta a rotatividade dos ativos e facilita o acesso ao funding das instituições financeiras nas operações de antecipação. A rastreabilidade é ampliada, pois cada endosso ou cessão é automaticamente registrado, permitindo auditoria em tempo real e mitigando fraudes. A segurança cibernética torna-se central, mediante certificações, planos de contingência e políticas de privacidade compatíveis com a LGPD.
As inovações não afetam a natureza jurídica, finalidade e eficácia executiva da duplicata. A duplicata continua sendo um título causal vinculado à entrega da mercadoria ou à prestação do serviço, podendo ser levada a protesto e executada judicialmente. A novidade não afeta a sua essência, mas a forma de sua emissão, registro e circulação.
Não obstante, a duplicata escritural oferece desafios que precisarão ser enfrentados, como a dependência de sistemas digitais, o risco de ataques cibernéticos e necessidade de inclusão tecnológica de emissores de pequeno porte. Portanto, a sua implementação exigirá adaptações práticas de todo o mercado, especialmente quanto à prova da existência e exigibilidade do crédito, à formalização do protesto e à execução judicial. Exigirá, também, maior atenção dos operadores jurídicos, dadas as diversas implicações legais relevantes resultantes da nova dinâmica.
A forma escritural não é mera digitalização da duplicata tradicional, mas escora-se no regime jurídico-operacional do registro eletrônico, que oferece maior segurança, eficiência e transparência. A plena maturidade do sistema será atingida com a padronização entre registradoras, a interoperabilidade supervisionada, o fortalecimento de cibersegurança e o apoio à adoção por pequenas empresas. É transformação estrutural pela via da digitalização financeira, favorecendo o acesso ao crédito e ao mercado de capitais do país.
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