
A entrada do produtor rural no sistema brasileiro de insolvência é uma evolução positiva, mas sujeita a aprimoramentos
No início de 2020, a pandemia produziu crise econômica generalizada, combinada à abundância de crédito e juros baixos, trazendo um ciclo de endividamento de empresas e famílias. A fórmula resultou, recentemente, no aumento na inadimplência e na procura por instrumentos de solução de crises de insolvência, como falência e recuperação judicial.
No agronegócio, alguns fatores se somaram ao quadro geral. O período pós-pandemia foi marcado por oscilações nos mercados de câmbio e commodities, e por uma sequência de eventos climáticos extremos, como secas e enchentes. No campo, o resultado foi aumento de custos, redução de receitas, quebra de safras e crises regionais.
A alavancagem de parte dos produtores rurais continuou subindo, em um contexto de juros altos e escassez de crédito. O cenário se somou a transformações no panorama jurídico, que tornaram mais fácil o acesso de produtores rurais ao sistema de insolvência.
Até 2020, o agronegócio fazia pouco uso de instrumentos como recuperação judicial e falência, em parte devido a restrições jurídicas. No Brasil, muitos dos negócios no campo estão juridicamente organizados, de forma parcial ou total, como pessoas físicas, o que limita o acesso às ferramentas de solução de crises.
No começo da pandemia, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) avançou no entendimento sobre o tema, no julgamento do REsp 1.800.032/MT. A decisão flexibilizou a exigência do período mínimo de dois anos de atividade prévia ao pedido de recuperação judicial, admitindo, no campo, a contagem do período de atividade anterior ao registro empresarial.
A reforma da Lei de Recuperação Judicial e Falências (Lei nº 14.112/2020) criou parâmetros para a inclusão do produtor rural pessoa física no sistema, formalizando o modelo. O acesso de produtores rurais pessoa física foi facilitado, e as portas do sistema de insolvência se abriram.
O resultado foi um grande aumento nos pedidos de recuperação judicial do agronegócio, superando a participação dos demais setores. O motivo, contudo, foi uma combinação única de causas econômicas e jurídicas, pegando de surpresa agentes econômicos ligados ao setor.
A recuperação judicial é um instrumento importante para a promoção da função social da propriedade, auxiliando na geração de empregos, renda, tributos e divisas. Essa ferramenta, no entanto, deve funcionar em equilíbrio, para não se tornar um fator de instabilidade e disruptura dos mercados de crédito.
O tema deve ser visto, primeiramente, por seu lado econômico. O momento atual é de juros altos, escassez de crédito e endividamento elevado. O subsídio agrícola é baixo no Brasil se comparado a concorrentes na China, Estados Unidos e Europa, o que deixa o produtor brasileiro mais exposto.
O cenário recomenda planejamento de longo prazo pelo poder público e inovação no setor privado, visando aumentar a oferta de crédito e reduzir seu custo. Órgãos reguladores e legisladores podem ajudar, promovendo o acesso a instrumentos financeiros, como o seguro agrícola, de penetração baixa no mercado.
Por outro lado, é preciso uma legislação mais atenta às especificidades da economia agrícola. O que se vê hoje é um verdadeiro cabo de guerra entre credores e devedores pela definição de quais créditos e débitos são “concursais” ou “extraconcursais”, ou seja, sujeitos ou não às condições da recuperação judicial. Isso traz imprevisibilidade e reduz a eficácia do sistema.
Um dos temas em disputa é a classificação dos grãos em poder do produtor como ativos essenciais, mas há outras controvérsias. A legislação traz limites aos créditos sujeitos à recuperação. Dívidas com cooperativas, com linhas oficiais e contratos renegociados de crédito rural não entram, pela lei, na recuperação judicial, o que gera mais discussão.
É preciso promover amplo debate quanto à adequação da legislação em vigor às necessidades da economia agrícola. Se por um lado é preciso preservar os mercados de crédito, por outro é preciso oferecer instrumentos efetivos para a solução de crises no campo.
Produtores rurais devem avançar na modernização da gestão financeira e atuar de forma mais preventiva, adotando estratégias de diversificação de receitas, organização de custos e estabilização de dívidas. A legislação coloca à disposição ferramentas como a mediação e a recuperação extrajudicial, que podem ajudar.
Por fim, a Justiça deve seguir investindo em especialização. Uma política nesse sentido é a interiorização das varas de direito empresarial, já avançada em vários Estados. A recuperação judicial é um tema de alta complexidade e grande impacto social,o que justifica a atenção especial dos órgãos jurisdicionais.
É próprio a qualquer sistema jurídico sofrer com distorções, mas também é próprio ao sistema jurídico saber se adaptar. De pouco adianta, neste momento, adotar um discurso de perseguição e retaliação aos usuários da recuperação judicial, o que tende a criar novos problemas sem trazer ganhos a longo prazo.
A entrada do produtor rural no sistema brasileiro de insolvência é uma evolução positiva, mas sujeita a aprimoramentos. O momento exige uma resposta institucional e organizada, partindo de representantes do Judiciário, Legislativo, Executivo e setor privado. A finalidade é produzir uma agenda de consenso, capaz de gerar desenvolvimento de forma justa e equilibrada.
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