
Norma define que empresa é a responsável de última instância por problemas no arranjo de pagamentos
O Banco Central (BC) apresentou nesta segunda-feira uma nova rodada de regras sobre gerenciamento de riscos nos arranjos de pagamentos, deixando mais claro quem paga a conta em caso de problemas em um dos elos da cadeia.
As bandeiras de cartões, que são as instituidoras dos arranjos, ganharam mais responsabilidades, mas com alguma flexibilidade para definir as garantias que exigem das outras partes. As medidas vêm um ano após o BC publicar uma consulta pública sobre o tema, que veio na esteira de problemas com a administradora de cartões Credz e a operadora de viagens 123 Milhas.
Ficou de fora da norma a proposta do regulador de criar uma espécie de fundo garantidor do setor, criticada pela indústria.
O arranjo de pagamento consiste em um conjunto de regras que possibilitam um certo tipo de transação. No caso dos cartões, são as bandeiras que estabelecem as regras para participação de outros agentes, como os credenciadoras (as empresas das “maquininhas”) e os emissores de cartão, que podem ser os bancos, por exemplo.
A resolução entra em vigor na data de publicação, mas as bandeiras terão 180 dias para protocolarem o pedido de autorização de alterações para ajustar os regulamentos às novas regras. Até a autorização do BC, os regulamentos vigentes continuam válidos.
Segundo o BC, a norma deixa mais claro que a bandeira é responsável por assegurar o pagamento de todas as transações ao usuário recebedor, sem exceções. Essa responsabilidade engloba o uso de recursos próprios “caso os mecanismos de proteção que adote sejam insuficientes”, diz o regulado. Essa previsão significa que caso aconteça algum problema na cadeia de pagamento, por exemplo, na instituição que emitiu o cartão, a bandeira será responsável por garantir o recebimento dos recursos pelo usuário recebedor.
“A bandeira será a única responsável pelo monitoramento e gestão de riscos dos participantes do arranjo. Além disso, em caso de insuficiência nos mecanismos de proteção, a bandeira deverá utilizar recursos próprios para garantir o pagamento das transações aos estabelecimentos comerciais”, informou o BC.
A discussão sobre o gerenciamento de riscos nos arranjos de cartões já vinha sendo feita pela indústria e ganhou força em 2023, quando a administradora de cartões Credz começou a enfrentar problemas e acabou sendo comprada pela DM em uma costura ampla que envolveu diversos participantes do mercado — incluindo a Visa —, para evitar uma quebra que causaria consequências em série. Com a possibilidade de uma intervenção do BC no Banco Master, a situação do Will Bank, controlado pelo mesmo grupo, também chamou atenção do mercado e a Mastercard (bandeira dos cartões da instituição) tem se envolvido nas conversas para achar um comprador para a fintech.
Para um executivo do setor de cartões ouvido pelo Valor, ainda que a responsabilidade das bandeiras tenha aumentando, o fato de existirem regras mais claras é bom. “Está bem claro agora que as bandeiras são financeiramente responsáveis pelos arranjos, então isso tende a tornar o mercado mais seguro”, diz.
Um advogado afirma que, agora, com o papel de “garantidor de última instância”, as bandeiras de certa forma ficarão expostas também a um risco de crédito, o que pode trazer profundas transformações para o setor.
Procurada, Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs), que liderava o debate no setor privado, disse apenas que tomou conhecimento da resolução do BC e “está avaliando o tema em conjunto com seus associados”. Já a Associação Brasileira de Instituições de Pagamentos (Abipag) disse ver com bons olhos a medida. “Dentre vários avanços, destacamos a garantia de que o usuário final recebedor, o lojista, receberá por quaisquer transações autorizadas de cartões; o aprimoramento de mecanismos que deem visibilidade, por parte dos participantes, da liquidação de obrigações feitas no bojo do arranjo; e o aumento da transparência na cobranças de tarifas”, diz em nota.
Enquanto a minuta inicial do BC, divulgada em outubro do ano passado, falava na constituição de um fundo a partir de contribuições dos diferentes participantes, a Abecs defendeu um modelo no qual não há socialização do risco, ou seja, cada participante é associado apenas ao risco que representa no sistema, deixando o dinheiro depositado em uma conta “escrow”. O regulador acabou acatando esse ponto, determinando a “constituição de conta vinculada para segregação dos recursos recebidos pelo participante que devem ser destinados à liquidação das transações de pagamento no respectivo arranjo”. Mas também será preciso criar um fundo garantidor específico de cada instituidor para ser usado em situação extrema.
O BC informou que, para equilibrar os riscos assumidos no arranjo, a responsabilização financeira dos outros atores que participam do arranjo no “chargeback” (reversão da transação a pedido do pagador) fica limitada a 180 dias. “Após esse período, caso as regras do arranjo permitam, o chargeback será de responsabilidade da bandeira.”
A resolução determina que a bandeira proíba que participantes do arranjo exijam garantias entre si. Além disso, não permite que credenciadores ou subcredenciadores restrinjam ou discriminem certos emissores. Ou seja, a gestão de risco será toda centralizada na bandeira, que não poderá mais delegar ao credenciador que cuide de um subcredenciador. “Nesse mesmo sentido, buscando aprimorar o monitoramento de subcredenciadores, o novo normativo vedou à bandeira a possibilidade de delegar ao credenciador a responsabilidade pelo gerenciamento de riscos dos subcredenciadores e pela exposição de riscos dessas instituições”, afirmou o BC.
Para Vicente Piccoli, sócio do FAS Advogados, a norma pode ser vista como uma vitória dos credenciadores, no sentido de se distanciarem das obrigações de monitoramento dos subcredenciadores. “A tendência geral da regra é robustecer as responsabilidades do instituidor do arranjo, que é quem tem visibilidade do todo, então está mais bem posicionado para fazer o monitoramento e a gestão desse risco.”
Na visão de Larissa Arruy, sócia do Mattos Filho, o BC deu um certo grau de discricionariedade para as bandeiras. “Talvez a minha maior preocupação, neste momento, seja o impacto que isso vai ter para o mercado. O BC vem nesse processo de buscar reforçar a segurança do ecossistema financeiro e de pagamentos. São medidas bem-vindas, mas o custo que elas vão ter ainda é difícil de prever.”
Para Kenneth Ferreira, sócio de Bancário, Operações e Serviços Financeiros do Lefosse, as alterações trazidas pela resolução são muito bem-vindas, uniformizando práticas de gestão de riscos, clarificando responsabilidades, aumentando a transparência e protegendo o fluxo financeiro até o usuário final. “Além disso, novos mecanismos e conceitos de gestão de riscos são introduzidos. A resolução agora define com precisão os tipos de riscos, como os de crédito, liquidez, operacional, fraude, entre outros. Exige-se monitoramento contínuo, aplicação de testes de estresse e backtesting, além de revisões periódicas das políticas e modelos. Uma novidade relevante é que todos os subcredenciadores devem participar obrigatoriamente da liquidação centralizada em até 180 dias, garantindo a rastreabilidade e controle do fluxo financeiro. Até agora os subcredenciadores que operavam abaixo de um determinado limite ficavam fora dessa obrigação, o que gerava distorções no mercado”, aponta.
Procurada, Visa disse apenas que “está avaliando o tema”. A Mastercard afirmou que atuará em conjunto com seus parceiros para garantir a adequação aos requisitos estabelecidos. “A companhia continuará colaborando de forma construtiva com o Banco Central e com o setor para assegurar que a experiência de pagamento permaneça segura, eficiente e confiável para consumidores e estabelecimentos comerciais em todo o País”. Já a Elo afirmou que atende ao Banco Central em todas as regulamentações que buscam fortalecer o arranjo de pagamentos. “A companhia reforça que já oferece um sistema de garantias ao mercado e que está preparada para seguir as novas diretrizes de segurança e transparência”.
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